Há 58 anos, a polícia abriu fogo contra uma manifestação em Joanesburgo, África do Sul, matando pelo menos 50 pessoas e deixando quase duzentos feridos. A reivindicação era que negros pudessem circular livremente por toda a cidade, como só brancos podiam. Aquele 21 de março entrou para história como o Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial, instituído pela ONU. Hoje, na área central de São Paulo, o lugar onde 67% das pessoas se declaram negras ou pardas está sitiado pela polícia. Para saber como é viver ali, conversamos com Janaína Xavier (36), moradora da vizinhança há dez anos, ex-usuária de drogas e ativista pelos direitos de pessoas em situação de rua. Seu sonho é entrar na política, mesmo com medo de sofrer como Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro.
Por Felipe Villela

“Algumas pessoas me falam assim: ‘Ô, Jana, você saiu das drogas, você é uma liderança forte aqui, por que você não se candidata pra ajudar a gente?’ Mas como? Eu não tenho estudo! Mas eu gostei da ideia, eu gosto de trabalhar com a população. Estou querendo abrir uma associação, mas pra isso eu preciso de ajuda. E essa ajuda tinha que vir do governo.
Eu acho que o governante, pra fazer o que faz aqui na Cracolândia, é porque não teve um familiar na droga, não teve um amigo envolvido no crime. O que importa é carinho, abraço, porque as vezes você bebe, você cheira pra tirar aquela tristeza, aquela coisa ruim que você tá passando. Se não tiver um apoio, como que a pessoa sai? Um dia eu também não tinha nada e teve gente que apostou em mim.
Eu fico vendo o jeito como os usuários são tratados, o preconceito. A sociedade vê eles como bicho, não vê eles como ser humano. Aí vem aquela revolta e a vontade é ir pra cima da polícia. Chega uma hora assim que a gente não aguenta mais, mas a gente tem que pensar duas vezes antes de fazer uma besteira. Porque a gente tem filhos, a gente mora aqui na área, e a gente corre o risco de ser forjada e ser presa sem dever nada. Eu já não gosto nem de ficar perto porque me dói, me mata um pouco. Os policiais podem fazer o trabalho deles, mas não desta forma. Nem cachorro merece ser tratado do jeito que eles tratam usuário.
Violência
Uma vez deixaram a minha filha pelada no meio da rua pra ver se ela tava com droga. Mas eu digo pra ela, ‘me chama porque eu vou falar com eles, porque você é usuária mas tem mãe’. E não é só ela, são várias pessoas que chegam perto de mim reclamando. ‘Olha, Jana, nós tá sendo agredido’. Outro dia um usuário queria que fizéssemos um abaixo-assinado pra parar com a violência contra eles. Mas como eu vou fazer sozinha, lutar sozinha? Não tem como eu defender eles sozinha.
Ultimamente piorou a situação, porque, para os inspetores novos, é tudo na ignorância, no palavrão. Até os moradores sofrem agressão, como se todo mundo que morasse aqui fizesse algo de errado. Minhas filhas, quando escutam uma bomba dentro de casa, elas tremem, morrem de medo.
Outro dia eu tava filmando um rapaz sendo agredido, e um GCM [Guarda Civil Metropolitana] veio e falou: ‘Encosta’. Eu falei que não ia encostar. Ele chamou a policial feminina. Ela veio, me pegou pelo cabelo e me colocou de cara pra parede. Eu dei uma cotovelada nela e ela veio pra cima de mim. E eu estava apenas filmando uma abordagem indevida. Aí tava passando outro carro da GCM com um que me conhecia e parou. Disse pra eu ficar calma que eles só iam conferir meus documentos. A coisa mudou na hora em que ela encontrou no meu celular uma foto minha com o [Eduardo] Suplicy. Aí me perguntaram: ‘A senhora é repórter?’ ‘Não, mas eu conheço muita gente’. ‘A senhora trabalha com o vereador Suplicy [PT]?’ ‘Não, mas ele é um grande amigo meu’. Aí eles me dispensaram rápido. Isso tem mexido muito comigo.
Eu tava pensando outro dia, tanto predinho aí que vai ser jogado no chão, por que não faz um alojamento? Coloca uma equipe de pulso firme para não entrar sujeira. Os moradores mesmo ficam responsáveis pela limpeza, por cuidar do dormitório. Eu sei que precisa de muita gente, que é difícil, mas não é impossível. Os usuários falam muito disso, de moradia. Moradia, amor, carinho, uma porta de emprego. Uma oportunidade para a sociedade ver eles de forma diferente. Não só usuário, mas traficante também. Porque muitos estão ali porque não conseguiram achar emprego. As vezes eles dizem que estão cansados dessa vida, querem outra coisa. Por isso, eu quero criar uma associação.
Se eu fosse vereadora, batia na questão da moradia deles. Ter um lugarzinho, mesmo que ele esteja usando a droga dele, mas pelo menos reduzir a quantidade, se aproximar da família.
Eu mesma saí do galpão na Al. Dino Bueno naquele projeto do [Fernando] Haddad (PT), De Braços Abertos, e fomos morar na pensão azul ali da esquina [R. Helvetia com Al. Barão de Piracicaba], em 2014. No começo eu tentei me adaptar ao trabalho, mas não tinha com quem deixar o meu filho, porque ele fica na escola meio período. Ele depende totalmente de mim, é autista e tem cinco anos. Meu marido trabalha até hoje no Braços Abertos. Ele está na jardinagem agora, mas começou na varrição. Semana que vem é a festinha do encerramento do programa e ele vai ficar sem emprego, porque o prefeito [João] Doria (PSDB) acabou com o projeto. Aí a gente não sabe como vai fazer, porque o dinheiro que ele ganha lá e o bico que ele faz é que seguram o aluguel.
A quantidade de família que arrumou um emprego no Braços Abertos, que saiu da rua, saiu do tráfico… Eles vão voltar pra rua. Tem gente que já tá aqui de novo. Um casal que morava num hotel que foi fechado, por exemplo, eles já estão traficando no fluxo [como se chama a concentração de pessoas comprando, vendendo e fumando crack na rua].
Droga
Quando eu era usuária de cocaína, ficava assim três, quatro dias virada na rua, aí chegava um momento que o corpo não aguentava mais, tinha que descansar. Aí eu ia pra casa, comia, tomava banho. Quando a gente fica na rua sem tomar banho, as pessoas olham diferente. Até minha mãe já afastava meus filhos de mim.
É meio complicado falar do meu passado. Eu passei muita dificuldade, porque todo dinheiro que a gente tinha ia pra droga. A gente só conseguia pagar o aluguel com ajuda do pessoal da igreja. Ninguém mais apostava na gente. Eu só escutava: ‘Ah, vai morrer nessa vida’.
Nunca cheguei a passar fome na rua, mas já fiquei alguns dias sem casa. Quando cheguei em São Paulo com o meu terceiro filho, depois de passar um tempo no Rio de Janeiro, minha mãe morava na Ocupação Prestes Maia, mas a coordenação falou que nós éramos traficantes, então a gente não podia entrar lá. Dormi na praça até arrumar um quartinho na Bela Vista.
Eu nasci em Minas Gerais e fui criada no interior do Rio de Janeiro. Minha mãe veio pra São Paulo pra trabalhar e eu fiquei com meu pai e minhas irmãs, mas eles não cuidavam de mim direito. Como minha mãe estava pra um canto e minha família pra outro, acabei ficando sozinha. Aí minha mãe me buscou. Ela era catadora de latinha e papelão. Eu cheguei aqui com 14 anos e grávida da minha filha mais velha, que hoje tá aí no fluxo. Quando saí de lá ninguém sabia que eu tava grávida, eu não sabia o que era gravidez.
Quando ficamos com dificuldade de pagar aluguel, a gente foi morar numa ocupação. Vivemos lá por muito tempo, até minha mãe conquistar um apartamento em Cidade Tiradentes. Ela se mudou pra lá e eu fui viver a minha vida. Hoje, tenho oito filhos, de cinco pais diferentes. Dois pais foram assassinados e com dois eu não tenho mais contato.
Conheci o meu marido na Av. Rio Branco. A gente ficou junto, eu engravidei. Como ele também era usuário de droga, tivemos uma briga lá na Ocupação Mauá e a coordenação pediu pra gente se retirar. Nossa, era muito briga dentro de casa, polícia na porta, ele me agredindo e eu querendo ir pra droga. Várias vezes eu roubei coisas dele. Relógio, telefone, essas coisas, pra poder obter a droga e a bebida. Ele ainda é meu marido, temos quatro filhos. Depois de sair da ocupação, a gente foi morar num hotel na Santa Cecilia. Como lá eu ficava muito presa, minha mãe veio ver um quartinho aqui perto, lá no galpão. Foi quando eu conheci a famosa Cracolândia, há dez anos. Com a droga eu parei há sete anos.
Racismo
Às vezes, quando eu brigo com o meu esposo, ele fala assim: ‘Ah, porque eu sou africano você briga comigo. Se eu fosse brasileiro você não brigaria, porque o brasileiro já mata’. Ele não fala com as pessoas, ele fica fechado, porque ele tem medo do preconceito. Ele é de Joanesburgo [África do Sul] e sente que tem muito racismo aqui. Metade dos amigos dele, que também vieram da África, estão no fluxo. Tem uns que são formados, que vieram tentar trabalhar aqui. Não conseguiram emprego, não conseguiram documentação e acabaram caindo na droga. Pessoal ali me chama de ‘cunhada’, apesar da gente nem ser parente.
Eu também sinto o preconceito. Há duas semanas aconteceu uma coisa comigo. Eu fui nas Casas Bahia tirar uma máquina de lavar. O vendedor fez a ficha, mas quando chegou lá no crediário a moça não quis aceitar. Ela começou a pedir número de telefone e nome de pessoas que eu conhecia. Ela queria saber de onde vem o meu dinheiro. Ela era clara. Eu falei assim: ‘Olha, a senhora não sabe com quem você tá mexendo. Eu tô simples, tô de chinelo, mas isto daí é preconceito’. Ela falou palavras que na hora eu não chorei por vergonha, porque tava muito cheio, minhas filhas estavam junto. Eu fiquei do meio dia até às quatro da tarde só pra tentar aprovar meu crediário. Eu saí de cabeça baixa, porque não fui aprovada. Sendo que meu guarda-roupa, meu fogão, tudo eu comprei lá. Mas no dia seguinte, um vendedor me ligou e disse que tinha falado com o gerente e que eu tinha sido aprovada. ‘A senhora ainda tem interesse pela máquina?’ Aí fui eu e minha filha lá tirar a máquina. Essa semana eu fui lá de novo e tirei um jogo de armário de cozinha.
Garra
Outro dia eu tava no mercado e vi uma senhora que pediu uma gordura pra fritar, e o menino deu também um bife pra ela. Quando ela tava saindo, o segurança pediu pra ver a sacola e tirou o bife. Meu dinheiro não deu pra pagar a mistura dela, e aquilo me doeu. Ela vivia na rua com certeza, queria alimentar alguém, talvez os filhos.
Tem também um menino aqui embaixo que ele rouba, sabe? Um dia eu vi ele apanhando de um monte de gente, e isso doeu meu coração. Meu coração grita muito pra ajudar este rapaz, pra ele sair dessa vida. Mas como que a gente faz se a gente não tem condições?
As pessoas dizem que eu falo muito de bondade, mas é porque eu tenho o sonho de ajudar quem vive na rua. Eu tenho vontade de dar tudo o que este povo precisa, roupa, sapato. E eu tenho aquela garra de ir pra cima, brigar.
Quando eu tava na ocupação e tinha protesto, a líder me colocava pra gritar, porque eu grito forte. Os policiais achavam que eu era liderança, mas eu era pequeninha. Então, num protesto, eu tô ali lutando mas sempre de olhos abertos, porque eu tenho medo de levar um tiro. Agora, vai que eu viro vereadora aqui da Cracolândia, já imaginou o que que as pessoas vão pensar? Vai mexer com muitos policiais que não gostam de mim, e também pode incomodar o pessoal da parte do crime, porque vai mexer com os usuários. Eu tenho medo de acontecer comigo o que aconteceu com aquela vereadora lá do Rio [Marielle Franco], porque a minha voz é como a dela, incomoda.”